15.7.20

Tô p da vida


A gente não tinha internet, smartphone, MTV, nem dinheiro pra comprar discos e revistas. Eram os anos 80 e nossas fontes primárias de cultura pop, música, cinema, celebridades era via rádio e programas de auditório. O Viva a Noite, do finado Gugu, era o ponto alto da semana.

Nós também não tivemos referências familiares muito significativas quando se tratava da área do entretenimento. Quer dizer… mamis me apresentou Hitchcock, Woody Allen e Kubrick, mas na área musical ela era mais Jovem Guarda que Novos Baianos.

Nossos pais - meus e da Kelzinha, prima inseparável - ouviam basicamente missa e sertanejo, nas rádios locais. Sertanejo raiz, lógico, que até hoje levo Tonico e Tinoco, João Mineiro e Marciano e César e Paulinho no coração.
Então veja bem, não me julgue mal. Nós queríamos era rock´n roll, e para preencher este vazio existencial em nossas almas, este desejo pela rebeldia, a contracultura, pelo polêmico e o controverso, nós contávamos com… Roupa Nova, Biquíni Cavadão e Yahoo (procure saber).

Nosso encantamento com as performances da Sandra de Sá e do Fábio Junior beiravam a idolatria. Mas todo nosso amor era reservado ao grupo Dominó.
Como concluímos que Dominó era rock´n roll eu nunca vou descobrir, mas era o que tinha para o momento.

Certa noite de sábado, enquanto dublávamos os gritinhos de “Viva a Noiteeeee” de mr. Liberato, chamaram a atração principal do programa, o Dominó, claro. Urros de histeria. O Afonso, band leader divoso e topetudo, ostentando um mullet de respeito, anunciou música nova. Delírio. Queríamos entrar na televisão, tamanho o furor.

Pois Afonso anunciou seu futuro novo sucesso com pompa e circunstância. Era uma MÚSICA DE PROTESTO, no que minha comunistazinha interior ainda não desabrochada (eu só tinha oito anos) gritou de emoção. A música falava da atual situação do Brasil, das dificuldades, da indignação e do desânimo de seu povo honesto e trabalhador. O título: Tô p da vida.

Aí eles cantaram e nós fizemos um esforço imenso pera absorver de imediato toda aquela letra linda e cheia de significados. A gente só queria saber aquela melodia primorosa de cor, pra cantar a plenos pulmões na sacada, tendo como platéia o Capão Cagado (que é a localidade onde minha prima residia).

Mas é claro que não rolou. Como ficamos desoladas… a música era nova, de um disco novo, e provavelmente ia levar semanas pra começar a tocar na rádio. Dormimos abatidas, mas no outro dia Kelzinha despertou com uma ideia genial em mente: se havia alguém que poderia nos ajudar, esse alguém seria o Geraldo.
O Geraldo era irmão de Kelzinha, jovem adulto de seus 18, 20 anos, vivia nas baladas, bebia e fumava, conhecia o mundo lá fora. É claro que Geraldo saberia a letra inteirinha de tô p da vida.

Esperamos o moço acordar, lá pelo meio dia, e, ansiosas, bloquinho e caneta em mãos, fomos até ele.

“Geraldo, Geraldo, Geraldo, presta atenção, ajuda a gente!”, estrilou kelzinha, frenética.
“Hummmmfff”, bufou o bom vivant, ressaqueadissimo.
“Sério, Geraldo, presta atenção!”, insistia a menina.
“Sai daqui, Kelzinha!”, ele gritou, atirando uma almofada em nossa direção.
“Oooow, mãe!”, Kelzinha apelou para a progenitora dos dois. Sendo ela a caçulinha mimada, foi atendida.
“Geraldo, presta atenção na menina, tadinha!”, ordenou tia Zilda. Suspirando, Geraldo dignou um olhar em nossa direção: “o que é?”
“Geraldo, eu nunca te pedi nada (era mentira), mas a gente PRECISA da letra da nova música do Dominó”, explicou a irmãzinha.
Geraldo resmungou mais um pouco, respirou fundo, mas finalmente pegou o caderninho e começou a escrever.

Risca daqui, rabisca dali, rasura, pensa, volta a escrever. Foram uns quinze minutos da mais pura ansiedade infantil. Em breve, teríamos nas mãos a tão sonhada daquele hino roqueiro com consciência política que ameaça, mas não fala palavrão porque é feio e a família tradicional brasileira reprovaria.

Finalmente, depois de tanta espera, Geraldo repousa a caneta na mesa, suspira mais uma vez e anuncia: “Pronto, terminei”.

Agarramos o bloquinho com as mãozinhas ávidas. Nele, jazia escrito uma única frase: “tô p da vida”.

Corremos amuadas para o quarto, de onde ainda conseguíamos ouvir a gargalhada retumbante daquela alma cruel.

É meio irônico porque hoje levei uns três segundos dando um Google pra conferir a letra de “Na raba toma tapão”. Venci na vida e o céu (e o wifi) são meu limite.



Um comentário:

Alexia Scheidemann disse...

Adorei o texto verdadeiro retrato de uma época me fez relembrar muitas coisas que vivi nos anos 80