26.3.10

A Pizza de Sardinha Perfeita (ou Para Eduardo)

Minha vó era uma stepmother, no melhor sentido da palavra. Era pra lá que eu corria quando me aborrecia com meus pais, era pra lá que eu rumava, mochilinha verde água nas costas, quando sentia falta de um lar "mais tranquilo". E por lá ficava durante duas, três semanas, um mês. Minha vó morreu com 80 anos incompletos, em 2007, mas já a considerava "velhinha" aos 14 anos (época em que adultos com mais de 30 passam a ser idosos). E velhinhos costumam seguir sua rotininha diária religiosamente: levantar cedinho, tomar café bem reforçado (preto, acompanhado de beijús torradíssimos), sem antes deixar de lavar bem o rosto e passar um pente (molhado) nos cabelos (nunca entendi o porquê do pente molhado, o cabelo da véia era bem fininho e macio). Como hóspede, me via na obrigação de fazer as mesmas coisas, aí tomar café da manhã era um martírio, coisa com a qual ainda não consegui me adaptar - guardo a fome para o período noturno...
Aí seguia pra escola, e - lindeza das lindezas - ela me acompanhava até o portão (ops, entrou um cisco no meu olho aqui). Meio-dia e o estômago parecia uma britadeira nervosa (claro, quem mandou só fingir que tomava café?). Era aí que tinha início algumas das minhas melhores experiências gastronômicas de todos os tempos. Porque a comida da vó era uma coisa absurda. Deliciosamente absurda. Só não era obscenamente absurda porque minha vó não era "destas coisas", uma santinha, coitada.
Teve a semana dos bolinhos. Todo dia eu entrava na cozinha, com aquele cheiro enlouquecedor de quitutes, e me deparava com uma travessa abarrotada de bolinhos. Ela já havia almoçado (gente velha come cedinho, acho que às 11h a bichinha já tava mastigando). Mas ficava de pé, bracinhos cruzados, me olhando comer. E ria, com as minhas expressões famélicas de furor estomacal.
Todo dia, ela perguntava: adivinha do que é o bolinho de hoje? Com a saliva escorrendo pelo queixo, eu tentava acertar só de olho - e nunca conseguia, para sua diversão. Num dia, os bolinhos jaziam na travessa, rechonchudos, inflados, de uma belíssima coloração verde escura. "Espinafre", contou. No outro, bolinhos lindamente brilhantes de óleo (sim, saúde era algo com que não nos preocupávamos, à época), todos bem laranjinhas. "Abóbora". No dia seguinte, bolinhos cor-de-rosa, uma vibe totally Hello Kitty. "Beterraba". Mas quando os bolinhos adquiriram a coloração verde água, eu me surpreendi mesmo. "Alface". Primeira e única vez na vida que vi (e comi) bolinhos de alface. Acho que ninguém faz bolinhos de alface, mas... que bolinhos... Meu Deus.
Não pára por aí, é claro. Minha vó era uma mulher rústica, sem refinamentos, criada na roça, mas de uma classe que eu poucas vezes vi por aí em muita granfa. Sua comidinha caseira era basicamente galinha ensopada, carne de panela, feijãozinho, coisas assim. O máximo da modernidade a que ela se permitia era a pizza. E é claro que não poderia ser uma pizza padrão, uma pizza clássica. Era a pizza da Minerva.
(Ainda mais) felizes eram os dias em que eu chegava do colégio, esverdeada de fome, e me deparava com aquela forma de pizza. Forma quadrada, gigante. Cinco dedos gordinhos de massa, e fofa. E a cobertura era a melhor sardinha em lata do mundo, temperadinha com muito amor de vó. Que pizza era aquela, Brasil? A velhinha talhava uma fatia do tamanho do mundo, cujas bordas ficavam pra fora do prato. Aí abria a geladeira e de lá tirava um pote de mostarda de 236 anos, provavelmente fora da validade, but, who cares? Um banquete.
Minha mágoa é que ela se foi e, com ela, a receita mágica da pizza de sardinha dos deuses. Se bem que, acredito, não havia receita. Minha avó era analfabeta, sua maior tristeza foi não ter aprendido a ler. Um caderno de receitas, portanto, seria um item desnecessário para a velha senhora, que armazenava todas as informações realmente importantes em sua prateada cabecinha (minha mãe, nora de Minervinha, sempre diz que, se esta tivesse a oportunidade de estudar, provavelmente seria reconhecida por seu brilhantismo no universo acadêmico, eu também acredito nesta teoria).
Familiares tentam exaustivamente achar o ponto perfeito daquela pizza filosofal, mas até agora ninguém conquistou a textura daquela massa, o tempero daqueles pequenos pedaços de peixe, a liga daquele molhinho descompromissado. Nem vão achar, apesar de desenvolverem variações deliciosas da versão original. Meu consolo é que vivi para provar daquela delícia incopiável. E transmitir a "saga da pizza de sardinha perfeita" para o máximo de pessoas possível.